Dados revelam desigualdades na inserção de indígenas no mercado de trabalho, no acesso à educação e na proteção dos direitos

596O Brasil é território ancestral de aproximadamente 1,7 milhão de indígenas, que representam cerca de 0,83% da população total, segundo os dados mais recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). Embora haja avanços, como o crescimento nas contratações formais e o aumento da presença indígena no serviço público, os desafios continuam profundos: exploração laboral, invisibilidade política e violações de direitos seguem como ameaças reais.

Mesmo quando conquista espaços, a população indígena enfrenta uma realidade profissional marcada por desigualdades. Dados do Painel Estatístico de Pessoal do Ministério da Gestão e Inovação mostram que somente 0,37% dos 570.590 servidores públicos federais ativos são indígenas, com atuação concentrada nos setores de educação e saúde. No setor privado, entre as 1.100 maiores empresas do país, até 2024, os indígenas ocupavam apenas 0,1% dos cargos, tanto em funções iniciais quanto de liderança, segundo o levantamento do Instituto Ethos.

Representatividade na Justiça do Trabalho

Na contramão desse contexto adverso, a Justiça do Trabalho tem implementado avanços relevantes em prol da inclusão indígena. Por meio da Resolução nº 512/2023, o Conselho Superior da Justiça do Trabalho (CSJT) instituiu a reserva de vagas para candidatos indígenas. Como reflexo dessa política, o Tribunal Regional do Trabalho da 11ª Região (AM/RR) passou a contar, pela primeira vez em 43 anos de existência, com servidores indígenas em seu quadro funcional. Atualmente, dois profissionais indígenas integram a instituição.

597Ewaney Owembley, pertencente à etnia Tuyuka, se tornou o primeiro indígena a tomar posse em um Tribunal FederalEntre esses marcos está a posse de Ewaney Owembley Prado de Sousa, servidor indígena natural de São Gabriel da Cachoeira (AM) e pertencente à etnia tuyuka. Ele protagonizou um momento histórico, em 2024, ao se tornar o primeiro indígena a tomar posse em um Tribunal Federal, considerando o ato um divisor de águas na Justiça do Trabalho. “Carrego um profundo orgulho, mas também sinto o peso da responsabilidade de representar muitos que ainda virão”, destacou. Para Ewaney, a presença rompe ciclos de invisibilização e inaugura uma nova era “de visibilidade, de voz, de ação concreta”. Sobre os desafios no atendimento às especificidades dos povos indígenas, ele defendeu a importância de uma escuta qualificada e respeitosa. “Não basta apenas ouvir, é preciso compreender, respeitar e considerar as especificidades culturais, sociais e linguísticas dos povos indígenas.” Ele também reforçou a necessidade de capacitação de servidores e magistrados: “O verdadeiro desafio é garantir que muitos outros possam ingressar, caminhar e brilhar nesse mesmo espaço. E para isso, precisamos continuar abrindo portas, com firmeza, coragem e propósito.”

599Naiane Cacau, da etnia Kokama e natural de Santo Antônio do Içá (AM), é a segunda servidora indígena a tomar posse no TRT-11Pertence à etnia Kokama, Naiane Inhuma Cacau é natural de Santo Antônio do Içá (AM) e a segunda servidora indígena a tomar posse no TRT-11, em agosto de 2025. Ela compartilhou reflexões sobre sua trajetória marcada por superação e compromisso com a inclusão. “Barreiras me ensinaram resiliência e reforçaram o valor da escuta atenta e respeitosa”, afirmou. Naiane acredita que a vivência em comunidades mais isoladas lhe proporcionou uma sensibilidade maior frente às necessidades dos povos indígenas e à forma como enxergam o mundo. Para ela, a inclusão genuína passa pelo reconhecimento dos saberes tradicionais, dos modos de vida e das formas próprias de resolução de conflitos. Ela também ressalta a urgência em fortalecer instâncias de consulta ativa, como audiências públicas nos territórios indígenas, com tradução em línguas originárias e mediação adequada. “Somente com representatividade real e diálogo contínuo é possível garantir que as vozes indígenas sejam não apenas ouvidas, mas realmente consideradas nas decisões que afetam suas vidas e seus territórios”, conclui.

Violações de direitos fundamentais

A exclusão histórica e territorial dos povos indígenas os torna especialmente vulneráveis a violações de direitos fundamentais. Vivendo em aldeias remotas, com acesso limitado a serviços básicos e canais de denúncia, muitas comunidades enfrentam ameaças graves, agravadas pelo avanço de atividades econômicas ilegais, como o garimpo predatório, que deteriora territórios e modos de vida. Segundo o Observatório da Erradicação do Trabalho Escravo e do Tráfico de Pessoas, entre 2004 e 2022, 1.640 indígenas foram resgatados de condições análogas à escravidão.

Essa realidade se agrava com obstáculos estruturais que persistem mesmo fora dos territórios. Embora a Lei n.º 9.029/1995 proíba práticas discriminatórias para admissão no trabalho, estudos acadêmicos, como o levantamento da faculdade de direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), apontam que o racismo estrutural continua influenciando decisões em processos seletivos, dificultando o acesso dos povos originários a oportunidades profissionais em igualdade de condições. A combinação entre exclusão territorial e discriminação revela um cenário de profunda desigualdade, que compromete o direito ao trabalho digno e à inclusão produtiva dos povos indígenas no Brasil.

A ativista indígena Iza Mura denuncia que a violência contra os povos originários vai além da dimensão física, ela é também institucional, silenciosa e persistente. “Hoje usam armas silenciosas para cometer a mesma violência que era cometida quando a nossa terra foi invadida”, afirma, referindo-se às políticas que fragilizam direitos e ameaçam territórios. Para Mura, a proteção da vida indígena exige mais do que discursos: é preciso garantir a efetiva demarcação das terras, conforme previsto na Constituição de 1988, e reconhecer a conexão ancestral que os povos indígenas mantêm com seus territórios, considerados sagrados. Ela reforça que essa luta não é apenas por sobrevivência, mas por continuidade histórica e espiritual. “Venho de um lugar distante onde me ensinaram a respeitar, mas nunca a temer. De onde venho remamos na mesma direção”, conclui destacando a necessidade de preparar as futuras gerações para enfrentar os desafios que ameaçam a Amazônia e seus guardiões.

Atuação da Justiça do Trabalho

600TRT-11 leva justiça social à Terra Indígena Raposa Serra do Sol durante ação itineranteA Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ratificada pelo Brasil em 2002 e vigente desde 2003, representa o principal marco jurídico internacional voltado à proteção dos direitos dos povos indígenas. Ela determina que os governos devem reconhecer e respeitar os valores sociais, culturais, religiosos e espirituais desses povos, bem como suas instituições, práticas e formas tradicionais de organização. Além disso, orienta que políticas públicas e iniciativas de desenvolvimento levem em conta a identidade coletiva, os sistemas tradicionais de trabalho e a relação ancestral com os territórios, promovendo trabalho digno sem sacrificar a valorização cultural ou fomentar a exclusão social.

Como resposta a esses princípios, a Justiça do Trabalho atua de forma permanente e estruturada junto às comunidades indígenas por meio de ações de itinerância, ampliando o acesso à Justiça e garantindo condições laborais justas. A Justiça Itinerante é uma modalidade de prestação jurisdicional que leva os serviços do Poder Judiciário a regiões de difícil acesso, especialmente àquelas em situação de vulnerabilidade econômica, social e geográfica. Prevista na Constituição Federal e regulamentada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), essa atuação permite a realização de audiências, atendimentos e serviços diretamente nos territórios, utilizando equipamentos públicos ou comunitários. No contexto amazônico, essa estratégia tem sido essencial para alcançar comunidades indígenas que, historicamente, enfrentam barreiras estruturais para acessar seus direitos trabalhistas e sociais.

A atuação da Justiça Itinerante na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, exemplifica a política contínua de aproximação da Justiça do Trabalho com populações que enfrentam barreiras geográficas e sociais. Em Boa Vista, as varas do Trabalho realizam ações em comunidades como Tucumã, Raposa e Napoleão, situadas a mais de 200 quilômetros de capital, em locais compatíveis com a realidade territorial e cultural das populações atendidas.601Liderança indígenas apresentaram reivindicações, e a desembargadora Ruth Sampaio ouviu diversas lideranças dos povos originários em Roraima

A Justiça do Trabalho também promove iniciativas de aproximação por meio de eventos e acordos institucionais. Em 2022, o TRT-11 organizou, em São Gabriel da Cachoeira, o seminário “Acesso à Justiça na Amazônia: a exploração do trabalho e dos povos indígenas”, reunindo ministros do Tribunal Superior do Trabalho, desembargadores, lideranças indígenas de diversas etnias (como Baré, Baniwa, Yanomami, Tukano e Dessana), além de representantes da Funai e da Fundação Estadual dos Povos Indígenas do Amazonas (Fepiam). Na ocasião, foi firmado um Acordo de Cooperação Técnica com o objetivo de fortalecer políticas públicas voltadas à proteção contra a exploração do trabalho infantil, da mulher e do indígena. 

Já durante visita institucional à Operação Acolhida em Pacaraima (RR), em novembro de 2024, magistrados da Justiça do Trabalho vivenciaram de perto a realidade dos migrantes venezuelanos e os desafios da resposta humanitária reconhecida internacionalmente. No trajeto, a comitiva do TRT-11 encontrou uma manifestação indígena na BR-174, na Terra Indígena São Marcos, onde mais de mil indígenas protestavam pacificamente contra o Marco Temporal e a PEC 48/2024. Após diálogo com as lideranças locais, os magistrados foram autorizados a seguir viagem e receberam uma carta pública assinada pelo Movimento Indígena de Roraima, endereçada às autoridades brasileiras, denunciando propostas legislativas que ameaçam os direitos territoriais e culturais dos povos originários.

Empreendedorismo

598Yamilla Manicongo, empreendedora trans, negra e indígena, defende ações concretas de inclusão no mercado de trabalhoA Justiça do Trabalho também atua no fortalecimento do empreendedorismo entre comunidades indígenas, por meio de parcerias com organizações da sociedade civil e órgãos públicos que desenvolvem projetos voltados à autonomia econômica. Segundo dados do Sebrae, divulgados em 2024, houve um crescimento de 15% nos projetos de empreendedorismo sustentável liderados por indígenas, com atuação predominante em áreas como artesanato tradicional, cosmética natural, agricultura familiar, além de alimentos e bebidas regionais.

A empreendedora Yamilla Manicongo, mulher trans, negra e indígena, participou da Feira de Empreendedorismo LGBTQIAPN+, realizada em julho pelo TRT-11. Ela é uma das vozes que propõem ações concretas para ampliar a inclusão de povos originários e da população LGBTQIA+ no mercado de trabalho, como mutirões de retificação de documentos e o reconhecimento da etnia indígena nos cadastros formais. Yamilla ressalta a importância de mapear essas identidades e estabelecer “pontes sensíveis que sejam uma via de mão dupla, visando protagonizar, desburocratizar os acessos e nos incluir”. Diante da falta de acesso ao ensino básico, ela enxerga o empreendedorismo como alternativa de sobrevivência e denuncia a escassez de letramento racial nas empresas, que, segundo ela, ainda ignoram a realidade indígena, “diferente do padrão hegemônico da sociedade”.

Coordenadoria de Comunicação Social
Texto: Jonathan Ferreira
Fotos: Carlos Andrade/Renard Batista/Arquivo Pessoal

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