VISÃO PANORÂMICA DA MIGRAÇÃO VENEZUELANA EM RORAIMA (BRASIL)/2019.

José Carlos Franco de Lima (UFRR))

Introdução

 

            O estado de Roraima (Brasil) nos últimos anos tem recebido migrantes venezuelanos, haitianos e cubanos. Os cubanos entram pela fronteira da República Cooperativista da Guiana. Já os haitianos vêm de Manaus (Estado Amazonas, Brasil) e algumas famílias vem da Venezuela. Em 2016, houve uma intensificação da vinda de venezuelanos indígenas e não-indígenas para Roraima, principalmente para a cidade de Boa Vista, capital do estado. Roraima tinha uma população em torno de 600 mil habitantes num território de 224.299 km². O Brasil tem uma fronteira de 2.199 km com a Venezuela, a rodovia BR 174, liga Manaus (Amazonas) a Pacaraima (Roraima), fronteira com a Venezuela. Do lado venezuelano está Santa Helena de Uairén (Estado Bolivar) que tem ligação asfáltica até CiudadBolivar, Porto Ordaz e Caracas. Nas últimas décadas do século XX e primeira década do século XXI, muitos brasileiros migraram para a Venezuela para trabalhar no garimpo de ouro, muitos inclusive adquiriram cidadania venezuelana durante o governo Chávez.

            Recentemente houve a inversão desse fluxo. O aprofundamento das disputas entre governo e oposição na Venezuela na segunda década do século XXI e o embargo econômico imposto pelo governo americano levaram a Venezuela a um processo de desabastecimento, inclusive de alimentos. Soma-se a isso o aprofundamento da crise hídrica na região do Rio Orinoco e no Vale de Caracas. A migração de Venezuelanos para o Brasil se intensificou após 2016. Em decorrência deste acontecimento houve um aumento gigantesco de pedidos de refúgio na Polícia Federal em Boa Vista (RR). Por isso, foram criados mutirões permanentes para agilizar a regularização dos migrantes no segundo semestre de 2017 com voluntários da Pastoral Universitária Católica (PUC), do Grupo de Estudos de Fronteiras das UFRR (GEFRON), do Centro de Migrações e Direitos Humanos (CMDH) e do Serviço Jesuíta a Migrantes e Refugiados (SJMR). Foram 7.600 pedidos de Refúgio até junho de 2017, além dos pedidos de residência temporária e os irregulares. A pastoral dos migrantes da Igreja Católica em 2018, promoveu mutirões em parceria com a Polícia Federal para regularizar a situação de migrantes que estavam vivendo nas cidades do interior do estado. Em 2017, devido à grande demanda, o governo federal abriu a possibilidade de solicitação de residência temporária sem a cobrança das taxas, mesmo assim, as solicitações de refúgio superaram os pedidos de residência temporária. Diariamente, mais de 200 pessoas se aglomeravam nas madrugadas em frente ao prédio da Polícia Federal em Boa Vista (RR) para entrarem com pedido de refúgio ou residência temporária.

A migração massiva ganhou visibilidade nas ruas, empresas e mídia. Grupos de homens pedindo trabalho com cartazes de papelão em pontos estratégicos nas principais avenidas. Mendicância, “limpa-vidros” em semáforos, músicos migrantes em bares e restaurantes, funcionários de empresas falando portunhol.

A situação da migração venezuelana entrou em pauta nas conversas de bares, nos lanches de rua, nas salas de aulas das universidades, nas filas de espera dos hospitais e postos de saúde, bem como nas casas das famílias e na mídia. O tema também se tornou pauta das campanhas eleitorais em 2018 em Roraima, tanto para responder ao eleitorado local, quanto para desviar o foco das eleições das questões econômicas e políticas nacionais.

            A grande maioria dos refugiados está em Boa Vista, capital de Roraima, que tem cerca de 320 mil habitantes, mas também existe a presença de venezuelanos em outras cidades do estado, que possui 14 municípios no interior, todos com menos de 30 mil habitantes. Essa concentração dos migrantes na capital deve-se a proximidade com a Venezuela, a espera de legalização da situação no país e familiarização com a língua portuguesa. Estando próximos à fronteira, é mais fácil remeter dinheiro a partir de Santa Helena de Uiarén, bem como viajar para a Venezuela e levar utensílios e alimentos para familiares residentes naquele país.

A maioria das ofertas formais de emprego na cidade está vinculada ao serviço público municipal, estadual e federal. A manutenção de ruas e rodovias é um exemplo, é comum a contratação de empresas terceirizadas pelo setor público para os serviços municipais de limpeza de rua e dos hospitais públicos. A recessão econômica brasileira, iniciada no final de 2014, aumentou o desemprego no país, em especial em Boa Vista (RR), principalmente em decorrência da redução de investimentos públicos em obras de infraestrutura. Devido a essa conjuntura, trabalhadores venezuelanos passaram a representar um contingente adicional de mão de obra excedente no mercado de trabalho local. Iniciou-se um processo de substituição de mão de obra brasileira por mão de obra migrante. Isso se deve a três fatores: a mão de obra migrante é qualificada, a remuneração que recebem é inferior que a paga aos brasileiros e o terceiro fator é que neste momento estão na condição de trabalhadores submissos, devido a situação de extrema necessidade a que estão submetidos. Esse quadro se alterará radicalmente em 10 anos com o reconhecimento progressivo dos diplomas dos migrantes e com a obtenção da cidadania definitiva.

Muitos desses refugiados seguem para outros estados do Brasil, é o caso de cinco cubanos que conhecemos em uma das turmas de português de acolhimento do Projeto Extensão de apoio aos refugiados em Roraima do Instituto de Antropologia da Universidade Federal, que funciona num espaço comunitário chamado Recanto Apuí, BairroCaimbé em Boa Vista (RR); eles ingressaram em meados de junho/2017, um mês depois, três já estavam em Curitiba (Estado do Paraná) juntando dinheiro para enviar aos dois que ficaram em Boa Vista para seguirem viagem. Outro exemplo são Merlina, Rafael e os dois filhos, que chegaram em 2015. Vindos de La Vitória (Estado Miranda, Venezuela), viajaram para Joinville (SC) de avião no dia 02 de fevereiro de 2018. Muitos venezuelanos têm utilizado o aeroporto de Boa Vista (RR) para viajarem em direção ao Uruguai e Argentina. Um dos objetivos do plano de controle de fluxo migratório implantado pelo Exército em 2018 é o envio dos migrantes para outras regiões do Brasil.

A presença massiva dos venezuelanos aos poucos foi se tornando uma constante nos espaços da saúde pública, nas escolas, nas empresas nas praças e nas ruas. O estranhamento vem sendo substituído aos poucos pela rotinização da presença dos migrantes. Espaços exclusivos de migrantes onde se fala somente espanhol são comuns nas vilas de apartamentos populares, bem como espaços e grupos que excluem os migrantes também são constantes. Porém, de forma geral, eles passaram a fazer parte da paisagem urbana.

Ações de acolhimento e proteção.

Acolher e Acolhimento se tornaram palavras correntes nos discursos das organizações da sociedade civil e organismos estatais diante do fluxo massivo de migrantes em Roraima. No âmbito das ações que acompanhamos entendemos que acolhimento é um valor ético e envolve um conteúdo afetivo. Se contrapõe a rejeição. Nas palavras de uma estudante de psicologia bolsista no Projeto Acolher/UFRR em 2017: O acolhimento envolve afeto eo afeto é revolucionário! É uma postura que está presente na chegada e na inserção dos migrantes no cotidiano social, inclusive no âmbito do trabalho. Porém nos discursos institucionais como do Ministério Público Federal (MPF), Ministério da Defesa, Secretaria do Bem Estar Social do Estado (SETRABES), Secretaria Municipal de Gestão Social (SEMGES), Comitê da Migração em Roraima (COMIRR), Instituto Nacional de Desenvolvimento Humano (IDMH), entre outras, o termo acolhimento remonta a proteção e garantia de direitos, inserção laboral e repressão a xenofobia.

As primeiras iniciativas de acolhimento e apoio aos refugiados se deram no âmbito da sociedade civil, principalmente no campo das organizações religiosas, nos anos de 2015 e 2016. Exemplos dessas ações de acolhimento são: as campanhas de arrecadação de alimentos nas igrejas católicas e evangélicas; o acolhimento no Sindicato da Construção Civil (SINTRACOM) em parceria com o Centro de Migração e Direitos Humanos (CMDH) e Pastorais Sociais da Arquidiocese de Roraima; a distribuição de cestas básicas de alimentos e assessoria jurídica pelo CMDH; as remessas de alimentos para Porto Ordaz e outras cidades pela Assembleia de Deus; e as doações de alimentos e roupas a desabrigados acampados em espaços públicos por grupos informais e espontâneos de voluntários.

O ano de 2017 registra uma série de intervenções do Ministério Público Federal, audiências públicas e seminários envolvendo a sociedade civil e órgãos públicos visando garantir os direitos dos migrantes. Entram em cena organismos como o Alto Comissariado da Organização das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), a Organização Internacional da Migração (OIM) e o Fundo das Nações Unidas para a População (UNFPA). O Projeto Acolher da UFRR se torna uma referência. Se instalam em Roraima o Serviço de Apoio a Refugiados e Migrantes dos Jesuítas (SJMR). Um abrigo para 300 migrantes é construído pela ONG Acolher sem Fronteiras.

A sociedade civil organizada amplia e consolida seus serviços em 2018. Ações como a oferta de banheiros e refeitório comunitários na Paróquia Nossa Senhora da Consolata desenvolvida pelo Instituto Nacional de Direitos Humanos (IDMH) e oferta de aulas de português e regularização de documentação na capital e em municípios do interior pela Pastoral dos Migrantes. A continuidade dos serviços de doação de alimentos, roupas e orientação jurídica pelo CMDH. Os jesuítas implantaram o Serviço Jesuíta de apoio a Refugiados e Migrantes, ofertando serviços jurídicos e intermediação para inserção sociolaboral. A Fundação Fé e Alegria, também dos Jesuítas, inicia um projeto educacional para crianças migrantes no horário de contraturno escolar. A Pastoral Universitária Católica iniciou um programa de translado de migrantes estudantes para Juiz de Fora (MG), arcando com os custos de transporte, garantindo três meses de hospedagem e alimentação na Universidade Federal de Juiz de Fora (MG), além de apoiar os estudantes migrantes na validação de diplomas. No campo espírita a ONg Acolher Sem Fronteiras abre um trabalho de intermediação para inserção laboral para migrantes em outras regiões do Brasil, além de manter um abrigo para 300 pessoas no Bairro Nova Cidade. No campo evangélico algumas igrejas passaram a oferecer cultos em espanhol e apoio aos irmãos de crença venezuelanos no tocante a abrigo, alimentação, aulas de português, trabalho e translado para outras regiões do Brasil. Uma sala digital voltada para ensino de português e informática financiada pela Ericson Brasil foi implantada no Centro de Referência para Imigrantes na UFRR.

O Recanto Apuí e a Comuna, espaços que recebiam artistas de rua e mochileiros, se tornaram espaços culturais independentes gerido por migrantes e voluntários oferecendo aulas de português, abrigamento comunitário, oficinas de música, oficina de alimentação saudável, aulas de compostagem, sessões de percepção corporal e oficina de gênero e assessoria a empreendimentos comunitários. Ocupações como a do Clube do Servidor no Bairro Joquei Clube com 400 pessoas e a da Avenida Forte São Joaquim com 80 pessoas são experiências muito interessantes de auto-organização.

Iniciativas desse gênero contribuem decisivamente para a formação da opinião pública favorável ao acolhimento, apesar de invisíveis aos aparatos de estado e a mídia. A invisibilidade garante maior autonomia por impedir estar fora da alçada das instituições públicas gestoras da política migratória. Por outro lado poderiam inspirar e aumentar a eficiência dos programas e projetos públicos voltados para migração à medida que as experiências fossem conhecidas e se tornassem referência.

As organizações da sociedade civil apresentaram um relatório em janeiro de 2018 para representantes do Conselho Nacional de Direitos Humanos, apontando a ausência de políticas públicas de acolhimento, a omissão do Governo Federal e a desarticulação das ações do governo estadual e municipal. Em contrapartida, o Governo Federal implementou um plano de controle de fluxo migratório sob direção do Exército.

 

Ações de acolhimento na Universidade Federal de Roraima

           

A Universidade Federal de Roraima vem desenvolvendo um conjunto de ações de acolhimento, proteção e inserção dos migrantes na sociedade local desde 2017. Sendo uma instituição situada no ministério da educação do governo federal, a UFRR representa uma referência no que tange a possibilidades de políticas públicas de acolhimento.

            As iniciativas de ações de acolhimento e proteção surgiram de forma espontânea entre alunos e professores como resposta as demandas sociais que o processo migratório apresentava. O Projeto Acolher/UFRR foi uma referência de acolhimento em 2017. Essa iniciativa ganhou muita visibilidade na mídia local e nacional, num momento em que o poder público estava ausente, as agências da ONU estavam se instalando e as organizações da sociedade civil com ações muito tímidas. As ações do projeto envolviam aulas de português, campanhas de sensibilização da opinião pública, momentos de escuta sensível, campanhas de doação de alimentos e roupas. Cada ação tinha uma equipe com autonomia para desenvolver seus trabalhos. O projeto foi oficialmente denominado Projeto de Apoio aos Refugiados em Roraima e teve apoio da Pró - Reitoria de Assuntos Estudantis e Extensão que cedeu 4 bolsistas. O nome fantasia “Projeto Acolher” deixa de ser usado em 2018 pelos coordenadores das ações; esses avaliaram que acolher era um sentimento mais amplo que um projeto institucional e que o uso do nome devia ser de domínio público.

A incorporação da dimensão emocional e ética como fundamentos dessas ações ajuda a compreender a opção por definir acolhimento como sentimento. Tão importante quanto o resultado das ações são as relações que se estabelecem nesse processo. Apontamos como pilares éticos o compromisso moral com o respeito a diversidade cultural e a solidariedade muito evidentes no comportamento de professores, estudantes e voluntários. Inclusive com doação de recursos financeiros e materiais pessoais. Além do sentimento doado é possível sentir a reciprocidade dos acolhidos na mesma medida no decorrer de cada ação.

Em 2018 o Português de Acolhimento passa a ser um projeto de extensão. O |Projeto Ciranda Tech, parceria entre a Erickson e a UFRR é implantada na universidade. Outras iniciativas no âmbito da universidade foram ganhando corpo como oferta de orientações jurídicas e as ações do Grupo de Estudos Interdisciplinares de Fronteira.

No segundo semestre de 2018 a Coordenação de Relações Internacionais da UFRR promoveu o I Seminário sobre Internacionalização da Universidade, apontando para a integração das ações de acolhimento a migrantes e dos programas internacionais de intercâmbio.

Além da Universidade Federal de Roraima, o Instituto Federal de Roraima e a Universidade Estadual de Roraima ofereceram cursos de português para migrantes. O I Encontro de Português de Acolhimento foi realizado nos dias 12 a 14 de maio de 2018 na UFRR reuniu profissionais e voluntários das universidades e organizações da sociedade civil que estão trabalhando com o ensino de português para migrantes. O que se viu foram concepções pedagógicas diversas que tinham como eixo comum o acolhimento e a integração dos migrantes na sociedade local.

Visando aprofundar a reflexão sobre o tema da proteção dos direitos aos migrantes, em especial no tocante a trabalho, foi organizado o IV Seminário Roraimense de direito e processo do trabalho em Boa Vista – RR em junho de 2019. Profissionais da Universidade ligados à área do direito presentes em cursos como Gestão Territorial, Relações Internacionais e Direito têm promovido eventos no sentido de divulgar e garantir os direitos dos migrantes.

Controle Militar do Fluxo Migratório

O Presidente da República cria o Comitê Federal de Assistência Emergencial em fevereiro de 2018. Composto por vários ministérios, conta com representantes daACNUR, OIM, UNFPA e UNICEF, mas não conta com representantes da sociedade civil organizada, nem do governo do estado ou das prefeituras de Roraima. O presidente da república nomeia um general do exército para presidir o comitê e destina o orçamento previsto para ser gerido pelo exército. Na prática os militares assumiram o controle da política de estado no tocante ao fluxo migratório. O exército assumiu os abrigos para refugiados, mais uma dezena de abrigos. No caso do acolhimento dos indígenasWarao e Eñepá, houve uma gestão compartilhada com uma equipe da SETRABES (Secretaria Estadual do Bem Estar Social) e a Fraternidade Humanitária Internacional até o final de 2018.

O modelo de gestão compartilhada implantado nos abrigos combina ONGs e Operação Acolhida (exército). A Fraternidade Humanitária Internacional, Conselho Norueguês e AVSI gerem os abrigos oficialmente. A vigilância e organização disciplinar está a cargo do exército. Projetos voltados a saúde, educação infantil e proteção social são desenvolvidos nos abrigos por ONGs como Exército da Salvação, ADRA, Fraternidade Humanitária Internacional, Casa de Los Ninos, Pirilampos, Visão Mundial e Médicos Sem Fronteiras. O exército também assumiu a seleção e o translado dos migrantes solicitantes de refúgio para outras regiões do país com apoio das agências da ONU: ACNUR, OIM, UNFPA e UNICEF. Em tempos de avanço das forças reacionários e autoritários na política brasileira, a Operação Acolhida foi uma intervenção militar camuflada em Roraima. A denominada Operação Acolhida destinou às forças armadas competências de assistência social. Uma manobra dos setores reacionários do governo para aumentar a presença militar no dia-a-dia da população e formar opinião pública favorável a presença militar na política interna.

O acesso aos abrigos é bastante restrito, inclusive a pesquisadores. As autorizações para a entrada de pesquisadores e repórteres estão sob alçada do comando da Operação Acolhida, ou seja, sob controle dos militares.

Observa-se que a CARITAS, entidade filantrópica ligada a Igreja Católica, implantou programas de interiorização, apoio a geração de renda, alimentação e aluguel social com recursos próprios, estando fora dos parecerias institucionais da Operação Acolhida. Já o Serviço Jesuíta de Proteção aos Migrantes estabeleceu um convênio de cooperação para documentação dos migrantes e seleção de migrantes para interiorização em parceria com a Polícia Federal e Operação Acolhida.

Em vez de articular as ações de governo nas esferas federal, estadual e municipal e fortalecer a sociedade civil organizada, o governo federal delega ao exército a implementação da política migratória. Essa estratégia revela uma tendência já observada na intervenção federal no Rio de Janeiro: repassar funções que competem às instâncias de governo civil para os militares. Esse quadro poderia ter se agravado se tivesse havido proliferação de tumultos e violência política nas eleições 2018, o que abriria possibilidade de promulgação de estado de sítio que poderia ser aprovado pelo congresso nacional conservador. Teríamos entrado num regime de exceção no qual as forças armadas, em especial o exército, seriam a salvaguarda da ordem. Impondo um regime de hierarquização e centralização nos moldes militares em todas as esferas de governo. Soterrando o projeto de controle social do estado pelos cidadãos previsto na Constituição de 1988. Obvio que esse regime de exceção seria consolidado por emendas constitucionais por um congresso eleito sob tutela de um regime autoritário. Esse horizonte político continua presente nos horizontes das forças políticas que venceram as eleições em 2018.

Por trás do plano emergencial de fluxo migratório apresentado pelo comando militar, está uma estratégia de controle territorial do estado de Roraima e o mapeamento total das ações voltadas para migrantes por parte do serviço de inteligência do exército. O governo do estado e as prefeituras, em especial, a prefeitura de Boa Vista (RR) perdem seu papel estratégico na política migratória, se tornando atores secundários.

A Operação Acolhida implanta um posto de triagem ao lado da polícia federal e um posto de apoio a migrantes de passagem ao lado do terminal rodoviário de Boa Vista – RR. Este último oferece serviços de guarda de mochilas, consignação de barracas para família dormir durante a noite, chuveiros para banhos e uma espaço de apoio para cuidar de crianças enquanto os pais buscam trabalho. Há também um setor específico da Operação Acolhida voltado para recrutamento laboral e um setor de propaganda. Ou seja, o exército passa a desenvolver funções de assistência social diretamente.

Cabe algumas observações sobre as agências da ONU que atuam no âmbito local. A ACNUR, OIM e UNFPA desde que se instalaram em Roraima vem constituindo Grupos de Trabalho (GTs) sobre temáticas específicas, numa tentativa de articular a sociedade civil, organizações empresariais, ministério público, judiciário, organismos federais, estaduais e municipais em torno das questões migratórias. Com a entrada dos militares em cena, passaram a operar, acompanhar e apoiar as ações de abrigamento e interiorização. De certa maneira, atuam parceiros internacionais no plano de controle de fluxo migratório do exército. A agência com maior presença é a ACNUR desde que o governo brasileiro reconheceu o status de refúgio por emergência humanitária, ou seja, a principal justificativa para os investimentos em controle do fluxo migratório está baseada sobre a condição de refugiados dos migrantes. A universidade federal cedeu dependências desde 2017 para as três agências se instalarem. A aproximação física facilitou um diálogo maior com as ações que a universidade vinha desenvolvendo. A inauguração do Centro de Referência ao Migrante, gerido pela ACNUR, dentro da universidade, com o desenvolvimento de algumas ações voltadas ao bem estar e orientação jurídico-laboral por parte da universidade federal dentro desse espaço, revela o nível dessa parceria.

O termo acolhimento passa a ser vinculado a controle militar, triagem e translado para outras regiões do Brasil. O âmbito da regulação estatal é a referência para acolhimento. Por outro lado, a extrema vulnerabilidade dos migrantes expostos a fome, desabrigo e a xenofobia local foi amenizada com a intervenção militar. O apelo a presença militar aparece na opinião pública em outras áreas sociais, por exemplo, o apoio a militarização das escolas estaduais. A insegurança diante de furtos de celulares, assaltos a residências, roubos de bicicletas e estupros de mulheres ganha contornos dramáticos, impelindo parte da população a defesa da repressão violenta a criminalidade. Associado a isso, se fortalece ações de xenofobia incitadas por meio de comunicação como televisão, rádio e redes sociais. Os programas policiais de televisão incitam a violência contra os venezuelanos que são apontados como os principais causadores do aumento dessa e de crimes nas cidades. Algumas reportagens culpabilizam os venezuelanos pela crise da cadeia pública, bem como nos sistemas de saúde e na educação municipal e estadual. Por outro lado, constatamos a realização de atos ilícitos cometidos por migrantes venezuelanos. Numa sexta feira a noite em fevereiro de 2018 estivemos no 5 Distrito da Polícia Civil: 3 boletins de ocorrência envolvendo furtos por migrantes. Em junho acompanhamos o trabalho socioeducativo junto a dois menores migrantes sentenciados a cumprirem as medidas de Liberdade Assistida e Prestação de Serviços à Comunidade.

Os mendigos e os assaltantes provocam reações raivosas em setores da população que veem neles a negação do trabalho como valor. É o que observamos em rodas de conversa com migrantes venezuelanos empregados e autônomos nas quais eles condenam a mendicância e a delinquência como formas de obter recursos, pois para eles o trabalho é a única forma válida para se ter uma renda. A fala de uma feirante brasileira é bastante expressiva nesse sentido: nega dar esmola a uma indígena warao venezuelana com o filho nos braços e fala para os clientes ouvirem: Criei meus filhos sozinha trabalhando!

O apelo para o aumento do controle e repressão militar tem sido o “antídoto” que uma parte da população encontrou para a sensação de insegurança reinante.

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Aluguel, abrigos e rua

A maioria dos migrantes vivem em apartamentos térreos tipo kitnet nas chamadas vilas ou estâncias, que são imóveis com vários apartamentos alinhados nos limites laterais do terreno, um após outro. O grau de insalubridade é alto, pois os tetos são, em geral, de telhas de fibrocimento sem forração interna. Como as temperaturas locais mantém uma média anual entre 35 a 40 graus no cerrado roraimense, aqui conhecido como lavrado, o ambiente da moradia se assemelha a uma estufa.  O aluguel é pago com trabalho formal ou informal.  

Algumas construções de prédios e casas foram ocupadas por migrantes. Em alguns casos com concordância dos donos, em outros casos sem sua anuência. Em junho de 2018 foram removidas pela Polícia Militar 31 famílias de um prédio abandonado e inacabado no centro. A polícia não tinha mandado de reintegração de posse. Após acordo mediado por uma organização pelo Serviço Jesuíta de Proteção aos Migrantes as famílias foram transferidas para um abrigo público recém-inaugurado.

São 13 abrigospúblicos em Boa Vista (RR) e um em Pacaraima (RR) em 2019. Cerca de 5 mil pessoas vivem nos abrigos que funcionam como centros de passagem, pois o processo de translado pelo poder público para outras regiões do Brasil prioriza abrigados. Só ficam nos abrigos solicitantes de refúgio. Todos os abrigos públicos são geridos pelo exército e organizações não-governamentais . A transferência compulsória para outras regiões do Brasil ou o retorno a Venezuela aparecem como objetivos estratégicos do plano de controle militar do fluxo migratório, porém o Ministério do Desenvolvimento Social tem se mostrado tímido na articulação com municípios receptores. A seleção para transferência dos solicitantes de refúgio nos abrigos ficou a cargo do ACNUR e a preparação dos grupos para viagem a cargo da UNFPA e OIM. A UNICEF entrou em cena com vistas a trabalhar com as mães e crianças que vivem nos abrigos; no ano de 2019 estabeleceu convênios de cooperação com a Fraternidade Humanitária Internacional, a ONG Pirilampos e a Visão Mundial para desenvolver programas de educação e proteção nos abrigos.

O abrigo mais antigo é o abrigo para refugiados indígenas, cujo maior contingente são waraos. Até a chegada do exército a gestão do abrigo estava a cargo da ONG Fraternidade Internacional em conjunto com uma equipe técnica da Secretaria do Bem Estar Social do Governo do Estado. Havia uma valorização das lideranças tradicionais indígenas. Um episódio ocorrido em 14.04.2018, revela nesse abrigo a mudança de direcionamento da política de abrigamento. O regimento interno do abrigo prevê o fechamento dos portões às 22 horas. Antes da chegada dos militares quem fazia o controle do portão eram indígenas refugiados. Naquele sábado a noite, três aydanos, líderes de grupos de famílias, com três crianças e uma mulher saíram. Eles voltaram bêbados em torno das 23 horas. A entrada não foi permitida. Negociaram a entrada das crianças e mulheres. Quando os soldados abriram o portão para elas entrarem os homens forçaram a entrada. Os indígenas são empurrados para fora e o portão é fechado abruptamente, prensando a ponta do dedo anular de Marcelino. Eles dormiram na praça. De manhã entram no abrigo. A Polícia Militar é acionada e os levam para o 5º Distrito da Polícia Civil para prestarem depoimento por desacato a autoridade e tentativa de agressão. Lá ficam três horas de pé numa cela minúscula com mais duas pessoas. Sem água, sem comida e de pé, pois não havia espaço para sentar. Prestam depoimento, a delegada avalia que não houve crime, os soldados não encaminham queixa. A delegada os libera. A guarnição da PM os leva de volta à cela, agora vazia, e batem neles dizendo que isso é o que acontece com quem quer bater em militar. Naquela mesma manhã de domingo, o tenente que comandava o contingente militar no abrigo, reúne todos os abrigados e anuncia a expulsão dos insubordinados. Afirma em alto e bom tom que os indígenas não são nada ali e que o comando é do exército. Os indígenas passaram a dormir na praça, havendo proibição das famílias levarem alimentos para eles. A instituição militar moldada na hierarquia com comando centralizado e obediência absoluta transfere para o abrigo esse sistema de ordenação.

Outro exemplo, a ONG Acolher Sem Fronteiras, ligada a Federação Espírita do Brasil, mantém um abrigo para 300 pessoas. O exército assina um termo de cooperação para ampliação do abrigo. Caberia aos militares ampliar as instalações, porém a presença militar foi bem além da construção civil, passando a vigiar chamadas telefônicas e fazer registro fotográfico das instalações e reuniões sem autorização da direção do abrigo, segundo relato das coordenadoras em reunião do Comitê da Migração em Roraima (COMIRR) em março de 2018.

Os refugiados desabrigados que viviam em espaços públicos aos poucos foram transferidos para os abrigos do exército. A prefeitura cercou com tapumes essas praças alegando obras de revitalização. Como a chegada de novos migrantes e a falta de vagas nos abrigos centenas de migrantes continuaram morando nas ruas ou acampando próximos aos abrigos púbicos, enquanto aguardavam vagas. O fluxo de migrantes refugiados continuou intenso em 2019. O número de desabrigados em situação de rua continuou se mantendo acima de mil pessoas. No período das chuvas, abril a agosto, era comum famílias dormirem na rua encharcados pelas chuvas fortes e constantes.

Uma equipe de uma entidade filantrópica de Rio Branco (AC) distribuiu senhas para entrega de kits de higiene na região do terminal rodoviário. Em menos de uma hora 200 senhas foram distribuídas. Mais da metade da fila ficou sem senha. A entidade priorizou moradores de rua e ocupações espontâneas de prédios abandonados para doar materiais de higiene e comida. Uma ação eminentemente assistencial, o líder da equipe reconhece que essa é uma ação paliativa, afirmando que o ideal seria que os migrantes tivessem organizações representativas para lutar por políticas de desenvolvimento econômico que permitisse a independência financeira dos mesmos.

Inserção no mercado de trabalho: desemprego e exploração

           

A reforma trabalhista protagonizada pelo governo federal na gestão do presidente Temer e os altos índices de desemprego estimularam a precarização e a exploração do trabalho em Roraima. Segundo um estudo da Organização Internacional do Trabalho (OIT) de 2016, a maioria dos trabalhadores e trabalhadoras migrantes se inserem nos setores e atividades econômicas que possuem os piores salários e as piores condições de trabalho. Isso acontece com a mão de obra qualificada provinda de Cuba, Haiti e Venezuela a medida que os diplomas não são reconhecidos no Brasil. Trabalhos eventuais, temporários e subcontratados são práticas usuais e legais na economia globalizada, por isso o trabalho informal sem proteção social acaba sendo a alternativa para a maioria dos trabalhadores refugiados e trabalhadores brasileiros. O pagamento na forma de diárias por serviços domésticos, como limpeza de quintais, ou por trabalhos eventuais na agricultura familiar ou nas fazendas, representa outra forma de exploração: 20 reais ao dia para limpeza de quintais ou por um dia de trabalho nas fazendas; 25 reais diários para uma jornada de seis horas em lanchonetes ou churrasquinhos noturnos. Em geral, a exploração e a precarização do trabalho têm atingido brasileiros e refugiados. A diferença está no fato de que os brasileiros estão abrigados e dispõe de uma rede de apoio familiar e de amizade já consolidada. Segundo relato entregue pelas organizações sociais que atuam na questão migratória aos representantes do Conselho Nacional de Direitos Humanos em 26 de janeiro de 2018:

Nas vias públicas, assim como nos portões das casas, imigrantes imploram por trabalhos, seja de forma oralizada, seja segurando cartazes com dizeres de pedidos. Tal situação levou o estado a um grande aumento de mão de obra barata e competição por postos de emprego. Além disso, subempregos e em condições semelhante à escravidão (não pagamento de salário ao final do trabalho, sem direitos trabalhistas, em situações insalubres) e aliciamento para a prostituição de adultos e menores são reportadas pelos imigrantes. (VENTURA, 2018)

O empresariado por sua vez ganhou maior oferta de mão de obra qualificada, aumento de consumidores e barateamento da força de trabalho com a chegada massiva de refugiados. Está havendo um processo de substituição da mão de obra brasileira pela força de trabalho venezuelana. Isso tem ocorrido por ser uma mão de obra mais barata e mais dócil por necessitar urgentemente de renda. As organizações empresariais fazem silêncio sobre a temática e se isentam de qualquer responsabilidade social. No final de setembro/2017, uma equipe da OIT veio a Roraima fazer um diagnóstico da realidade local no tocante ao mercado de trabalho. Compunham um grupo junto com o Ministério Público do Trabalho e voltaram em dezembro para apresentar os resultados da pesquisa. Nas duas visitas, agendaram reuniões com entidades empresariais, sendo que somente a Federação do Comércio e o SESC compareceram, acenando levemente no sentido de pautar as condições de trabalho no Estado. Em compensação, as duas tentativas de agendar conversas com a prefeita e a governadora abortaram.

Uma questão crucial para a ampliação do mercado de trabalho é a atração de investimento públicos, privados e associativos na região numa perspectiva de desenvolvimento humano sustentável. Por exemplo, investimentos na cadeia produtiva do reflorestamento e reutilização do lixo plástico teriam impacto decisivo na oferta de empregos no estado, ao mesmo tempo que seria uma contribuição decisiva para preservação no ecossistema amazônico na bacia do Rio Branco. É o que tem sido defendido pelo Projeto de Apoio aos Refugiados em Roraima vinculado ao Instituto de Antropologia da UFRR.

Também merece destaque o quadro referente às profissionais do sexo. Esse setor tradicionalmente informal e vinculado às tradições patriarcais da sociedade brasileira se tornou rentável na sociedade de consumo. A prostituição de rua na região da Feira do Passarão em Boa Vista (RR) se iniciou na década de 90 com os recursos provenientes do garimpo no Brasil, Venezuela e Guiana. A atividade ganhou maior visibilidade e notoriedade com o aumento do número de mulheres venezuelanas trabalhando na prostituição de rua. Nas cidades do interior como São João da Baliza, Mucajaí, Alto Alegre, Bonfim e Rorainópolis, elas foram cooptadas pelos prostíbulos.  Em 2017, vários cárceres privados de prostitutas foram desmantelados pela Polícia Federal no Estado. As prostitutas, travestis e transexuais formam um grupo altamente estigmatizado e vulnerável. Espancamentos, estupros, tentativas de homicídio e desaparecimentos foram detectados pela equipe da UNFPA de Roraima. Além disso, confirmou-se o descaso por parte de policiais quando elas fazem boletins de ocorrências nas delegacias. Atualmente, discute-se um projeto de extensão na Universidade Federal voltado para defesa pessoal e apoio psicológico a prostitutas, travestis, transexuais e mulheres vítimas de violência sexual. Um dos segmentos focados pelo projeto será as refugiadas que trabalham como profissionais do sexo.

Um dos fatores para o crescimento da rejeição em relação aos migrantes é a substituição da mão de obra de trabalhadores brasileiros por trabalhadores migrantes. O que tem repercussão direta no discurso dos políticos locais em vistas as eleições de 2018. A culpabilização dos migrantes pelo desemprego e aumento da criminalidade na opinião púbica local é reforçada pela mídia local. A discussão de propostas de políticas de investimento para atração de investimentos públicos e privados para criação de postos de trabalho e políticas de prevenção a violência é evitada por políticos e mídia local. Essa estratégia de desviar o foco das eleições no estado para os migrantes é uma forma de evitar formular propostas para um desenvolvimento sustentável para a região.

Quando se trata de mercado de trabalho para migrantes o termo mais utilizado é inserção laboral. E quando se trata de proteção nos referimos a garantia de direitos trabalhistas. Observamos que nesse setor a palavra acolhimento não é utilizada. O que nos leva a supor que as relações de produção são mediadas pelos interesses econômicos, não havendo espaço para acolhimento. Por que o bem estar emocional estaria ausente dos espaços produtivos? Por que empregar e acolher representam ações tão separadas? Por que o contrato de trabalho exclui pactos emocionais e sentimentais? Talvez elementos como confiança, inveja, narcisismo e solidariedade, entre outros, estejam presentes nas relações de contratação de mão-de-obra e formem um pacto oculto que escapam ao direito objetivo. O trabalho de mediação para inserção laboral envolve proteger o migrante contra tráfico humano e escravização, mas ainda está longe de incorporar o conceito de acolhimento no âmbito do trabalho.

Por fim cabe observador neste tópico que o mercado de consumo, principalmente no ramo alimentício está em pleno crescimento. Um bom exemplo é a filiar local do grupo Atacadão que tem batido recordes de venda. É comum a presença de caminhoneiros autônomos em frente ao estabelecimento para levar cargas de mercadorias para cidades do interior. O fluxo maior desses caminhões é para Pacaraima (Roraima, Brasil). Se bem que Boa Vista (Roraima, Brasil) continua sendo o maior mercado consumidor no ramo alimentício.

 

Acolhimento na saúde e educação públicas

A saúde pública foi o primeiro setor do serviço público no qual o termo acolhimento ganhou uso corrente. O acolhimento concebido como a humanização na recepção do paciente. A triagem dos atendimentos é iniciada pelo acolhimento. Aqui acolhimento remete a recepção, procedimentos de entrada no sistema de saúde púbica.

Os serviços de saúde pública vêm sofrendo precarização intensa em nível nacional e, em especial, em Roraima. Os governos estaduais têm gerado uma crise financeira na área da saúde que se agrava a cada ano devido à má gestão e ao desvio de verbas. A rede estadual de saúde, responsável pelos hospitais e maternidades, atende à demanda curativa de forma deficitária. Chegou a faltar analgésico no Hospital Geral de Roraima (HGR) e no Hospital de Rorainópolis em 2015. Nesse mesmo ano, os servidores da saúde entraram em greve por melhores salários e melhores condições de trabalho. O sistema de atendimento da saúde indígena conta com dois Distritos Sanitários em Roraima e se utiliza da rede hospitalar estadual, uma parte da verba para saúde no Estado provém do orçamento da Secretaria Especial da Saúde Indígena. Assim, é evidente que o governo estadual, seja por problemas de gestão, seja por falta de recursos, permitiu o sucateamento do setor.

Acompanhamos a internação de um jovem músico venezuelano que teve um surto psicótico. Ele estava numa casa de apoio de artistas que viajam pela América Latina. O apoio dos anfitriões foi fundamental, inclusive para contatar a família. O processo inicialmente foi muito difícil, pois ele resistia em ir ao Centro de Atendimento Psicossocial (CAPS). Chegando lá procuramos o setor de acolhimento onde nos disseram que como era refugiado ele tinha que entrar pela emergência do Hospital Geral. No hospital, os atendentes e o médico não falavam espanhol na primeira entrada. Na segunda, foi atendido por um médico cubano.  Após dez dias de internação no HGR foi encaminhado para o CAPS. Depois de um mês voltou com a mãe para a Venezuela. Profissionais que só falam português e migrantes que só entendem espanhol têm sido um empecilho para o atendimento em postos de saúde, hospitais, escolas e universidades. Observamos no Projeto de Apoio aos Refugiados em Roraima/UFRR que a qualidade do atendimento aos refugiados depende muito da atitude dos servidores que estão no serviço público naquele momento. Gentileza, por exemplo, tem mito haver com o humor e postura do servidor.  Já as questões relativas à infraestrutura dependem de instâncias superiores que não têm contato direto com os refugiados.  A chegada massiva dos refugiados sobrecarregou ainda mais o sistema de saúde que, em contrapartida, não teve aumento de repasses de recursos por parte do Governo Federal

As redes municipais de atendimento básico à saúde têm assistido brasileiros e migrantes com os recursos que dispõem. Postos de saúde como o da Vila Campos Novos no município de Iracema (RR) têm uma equipe pequena e pouca medicação para o atendimento. Algumas regiões periféricas de Boa Vista (RR) tiveram aumento da população devido à implantação de conjuntos habitacionais na última década, sem a construção ou ampliação dos postos de saúde dos bairros adjacentes, o que gerou uma incapacidade de atendimento em bairros como o Conjunto Habitacional Pérola I, II, III, IV e V e Vila Jardim.  Como agravante, observa-se que as epidemias de dengue, chikungunha, zica, sarampo e gripe H2N1 alcançaram índices alarmantes na última estação das chuvas (abril a agosto de 2017). Nas regiões de floresta no interior do estado, a malária é outra ameaça constante. Os programas de saúde preventiva voltados ao combate de epidemias têm sido insuficientes para deter essas epidemias.

Em relação à educação escolar, segundo O perfil sociodemográfico e laboral da imigração venezuelana no Brasil do Conselho Nacional de Imigração, 46,1% dos migrantes venezuelanos possuem Ensino Médio completo e 28,4% Ensino Superior completo. Em relação a refugiados cubanos e haitianos, encontramos perfis semelhantes. Aqui se apresentam dois desafios: fazer o processo de reconhecimento dos certificados de ensino médio, competência da Secretaria Estadual de Educação, e fazer a equivalência de diplomas de Ensino Superior, competência do Ministério da Educação através da Universidade Federal de Roraima.

A UFRR instalou oficialmente a Cátedra Sérgio Vieira de Melo em 2017, ligada à ACNUR, visando construir uma política de apoio aos refugiados na universidade. O maior empecilho para a implementação de um programa de equivalência acessível para diplomas de estrangeiros é a sobrecarga de trabalho dos docentes e a falta de servidores técnico-administrativos. A instalação de processos de reconhecimento implica em disponibilidade de docentes e técnico-administrativos. Atualmente os professores estão sobrecarregados, sendo exigido altos índices de produtividade em pesquisa e ensino. Devido às perdas salariais e cortes de recursos federais, estão trabalhando mais e ganhando menos. Além disso, as tendências corporativistas de algumas áreas profissionais dificultam a implementação de programas de reconhecimento de diploma para profissionais estrangeiros. Um processo seletivo para ocupação de vagas remanescentes por solicitantes de refúgio e residência temporária na Universidade Federal será realizado no inicio de 2019.

            A rede estadual oferta vagas para o Ensino Fundamental e Ensino Médio, respondendo principalmente pela oferta de vagas do sexto ao nono ano do Ensino Fundamental. Nesse caso, a exigência do histórico escolar para filhos de refugiados tem sido um empecilho para o avanço na carreira escolar em algumas escolas. A ausência de programas de ensino de português para jovens e adultos nas escolas municipais e estaduais no período noturno também é uma demonstração de omissão dessas esferas quanto a políticas de acolhimento.

O ensino básico é uma competência compartilhada pela rede municipal e estadual: o acesso tem sido garantido a filhos de pessoas solicitantes de refúgio e residência temporária, porém não há programas de apoio e reforço escolar para esses estudantes. Além disso, rotatividade decorrente das mudanças constantes de endereço por parte das famílias migrantes tem sido outro fator que dificulta a aprendizagem, inclusive da língua.

Marcelo Naputano, psicólogo social que vem atuando em escolas municipais de Boa Vista (RR) e Amajari (RR), sugere que além de matricular as crianças refugiadas, as secretarias municipais de educação desenvolvam um programa de educação voltado para a mediação socioeducativa entre gestores, professores, estudantes e famílias de refugiados venezuelanos como alternativa para aprofundar a integração cultural, onde se possa vivenciar a educação como experiência de uma construção relacional cotidiana em que se crie vínculos em meio aos conflitos.

As ações de bem estar desenvolvidas no Centro de Referência para Imigrantes na Universidade Federal, como capoeira, ioga e dança circular são ações que integram saúde, educação e lazer. Nessas, o acolhimento faz parte inerente do processo criativo-relacional. Consideramos que essa perspectiva de ações voltadas ao bem viver possa ser incorporada pela rede de atendimento do Sistema Único de Saúde (SUS), principalmente pelo programa saúde da família.

No campo da educação pública o termo acolhimento em geral, não aparece nos projetos pedagógicos. Nas escolas o primeiro contato do migrante ocorre na secretaria. Diferente da área da saúde, o termo não aparece nos projetos, e normalmente se restringe a apresentação do novo aluno para a turma onde ele foi inserido. Leia-se apresentação como falar o nome. Numa perspectiva mais ampla acolhimento é uma atitude que deve perpassar os serviços públicos como um todo.

Quando a mídia pauta o acolhimento

Sensibilizar a opinião pública tem sido um dos grandes desafios das ações voltadas para mídia e redes sociais da UFRR: realizamos uma palestra com a fotógrafa portuguesa Elizabeth Maisao no SESC sobre os campos de refugiados na Europa em 02.06.2017. O anfiteatro ficou lotado com 500 pessoas dos setores de renda média interessados em formar opinião sobre o tema. Inúmeros seminários no âmbito acadêmico das instituições de ensino superior também elegeram esta temática nos últimos dois anos. Mesmo assim, setores xenófobos têm conseguido adeptos às ideias de culpabilização dos refugiados pelo aumento da criminalidade e desemprego.

Por iniciativa da ONG Conectas de São Paulo (Estado de São Paulo), houve um workshop para jornalistas e outro para estudantes de jornalismo, ambos voltados para a garantia de direitos humanos no final de 2017.  Houve boa adesão e repercussão junto aos profissionais do setor, com exceção dos repórteres ligados aos programas sensacionalistas, que não compareceram. Esses programas em geral incitam a raiva difundindo o medo e o pânico, fazem julgamentos sumários baseados em leituras superficiais dos fatos, indicando práticas condenáveis e segmentos que devem ser culpabilizados. Quanto às direções das empresas, estas se mostram arredias a qualquer discussão sobre o assunto.

A mídia local tem pautado campanhas de doação de roupas de bebês para filhos de refugiados nascidos na maternidade Nossa Senhora de Nazaré, bem como tem dado cobertura a ações de acolhimento, apoio e inserção no mercado de trabalho a refugiados. As redes nacionais de televisão também abriram espaço nesse sentido, por exemplo, o Programa Encontro com Fátima Bernardes apresentou reportagem sobre ações do Projeto Acolher/UFRR-2017 e chegou a convidar a coordenadora do Projeto para uma participação ao vivo no programa. Por outro lado, programas de televisão e rádio sensacionalistas têm estimulado a xenofobia, principalmente contra venezuelanos. Nas redes sociais temos uma disputa semelhante.

A Rede Amazônica, por exemplo, aderiu a Campanha Brasil um Coração que Acolhe da Organização Social Fraternidade Sem Fronteiras. Uma reportagem de cinco minutos nos jornais regionais do dia 28.07.2018. Inclusive indicando o site da ONG para quem quisesse aderir a campanha de apoio, principalmente no tocante a interiorização. As inserções durante programação locais destinadas ao Globo Comunidade foram configuradas em torno da crença que o povo brasileiro é um povo acolhedor. O termo acolher/acolhimento está no centro do discurso do marketing do acolhimento.

Os meios de comunicação ligados a organizações religiosas têm se pautado a favor da solidariedade aos refugiados. As igrejas têm se apresentado como formadores de opinião pública a favor do acolhimento e apoio, principalmente no âmbito dos seus frequentadores. As igrejas evangélicas em geral direcionam a assistência a refugiados evangélicos.

A mídia e as redes sociais em geral operam com forte apelo emocional. Quando se tratam de acolhimento as reportagens e as postagens apelam para a solidariedade diante do sofrimento dos migrantes e para a exposição de ações afirmativas de ajuda e promoção. O pano de fundo é a vulnerabilidade social dos migrantes. Enquanto na mídia xenófoba o pano de fundo é o potencial violento dos migrantes. A bipolaridade amor-ódio parece se impor aos sistemas de comunicação. Nossas práticas educativas e de convivência com migrantes nos levaram a deixar de lado essa polarização maniqueísta. São pessoas e grupos com qualidades e defeitos, com potencias onde amor e ódio convivem.

Os desafios da diversidade étnica.

 

A diversidade étnica em Roraima inclui indígenas, maranhenses, gaúchos, paraibanos, cearenses, amazonenses e mineiros, guianenses, haitianos, cubanos, peruanos e venezuelanos.

No campo dos indígenas estão macuxis, wapixanas, wai-wai, taupepangues, yanomamis, waimiri-atroaris e pemons. Segundo dados da Organização dos Indígenas da Cidade (ODIC) são aproximadamente 35 mil indígenas em Boa Vista (RR). Segundo o IBGE são 54 mil em terras indígenas de Roraima. No campo dos migrantes regionais o maior contingente é de maranhenses, 95 mil segundo o senso de 2010. No campo da migração internacional estão guianenses, haitianos, africanos, peruanos,cubanos e venezuelanos.  Podemos falar em etnoindigeneidades, etnoregionalidades e etnonacionalidades.

Um dos elementos distintivos entre os grupos étnicos é a língua. Estamos utilizando grupos em sentido lato para representar todos os membros que compartilham traços étnicos comuns. A diversidade linguística na região é impressionante: macuxi, taurepang, wapixana, ninan, xirixana, yanomami, sanomá, iekuana, wai-wai, waimiri-atroari, warao, espanhol, português, inglês, francês, criolês. Num universo de 650 mil pessoas.

Em relação aos migrantes venezuelanos um dos marcadores identitários mais evidentes é o idioma. A inserção no mercado de trabalho implica no uso do português, por isso há um esforço de aprendizagem por parte dos migrantes. Ao mesmo tempo entre os conterrâneos a língua de origem é usada constantemente. A língua espanhola é o principal fator que distinguem brasileiros e migrantes venezuelanos, como bem representa a frase citada por uma estudante do nono ano da Escola Estadual Idarlene Moraes: “Só sabemos que são venezuelanos quando abrem a boca”. Os migrantes venezuelanos fazem uso da língua espanhola em espaços públicos sem nenhuma descrição. O que não ocorre com as línguas indígenas, com o inglês guianense e com o criolês dos haitianos. Essas línguas são usadas em espaços privados ou de forma discreta em espaços públicos, de forma a não chamar a atenção. Uma estratégia para lidar com a rejeição.  

Os haitianos compõem um grupo de alta visibilidade, seja pela venda de picolés e alho nas ruas e feiras, seja pela negritude. A comunicação com brasileiros é muito limitada, também devido à língua. Em uma visita de campo a uma estância onde vivem somente haitianos, quando perguntados sobre a opinião que tinham em relação aos brasileiros, foram extremamente cuidadosos com as palavras. Uma moça haitiana que falava português fazia a tradução, mas antes de autorizarem ela a falar em português o que diziam, conversavam entre si em francês o que deveria ser dito.

Os migrantes paraibanos, cearenses e gaúchos dão ênfase ao sotaque linguístico para afirmar sua identidade de origem. Esses três grupos utilizam uma estratégia inversa dos indígenas e africanos: eles se afirmam pela visibilidade, ou melhor, audibilidade.

Acolher uma língua diferente é aceitar o uso público da mesma. É tentar aprendê-la. Estamos em um contexto de hiperdiversidade cultural. O desafio é constituir espaços acolhedores, sejam públicos ou privados, onde essa hiperdiversidade cultural seja respeitada e estimulada. Por exemplo, estimulando o uso de várias línguas, em vez de impor o português como única língua franca. Um dos grandes desafios nesse tópico é a realização de ações que consigam integrar pessoas provenientes de diversos grupos étnicos.

Comentários conclusivos

            A política migratória desenvolvida pela Operação Acolhida está focada em na regularização documental dos migrantes na condição de refugiados, abrigos massivos e transferência de migrantes para outras regiões do Brasil. Porém está desarticulada das politicas municipais e estaduais de educação e saúde. Bem como ignora o desenvolvimento econômico da região.

            Os altos investimentos federais na operação acolhida fortalecem economicamente o exército. Os recursos provenientes dos fundos ligados as Nações Unidas e geridos pelas agências da ONU em cooperação com ONGs com reconhecimento internacional movimentos movimentam a “indústria da migração”. O impacto desses investimentos na economia local é evidente. Setores ligados a rede hoteleira, transportes e imóveis estão muito aquecidos. Porém são ações de caráter emergencial, havendo pouco investimento em ações de caráter estrutural que possibilitem a construção de uma economia que aumente a produção regional de bens e serviços úteis e saudáveis. Parece que a indústria da guerra se apoderou dos recursos destinados a política migratória para aumentar sua capacidade de controle sobre a sociedade fronteiriça local.

 

 

 

REFERÊNCIAS

BARTH, Fredrik. O Gurú. In: BARTH, Fredrik. O iniciador e outras variações antropológicas. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2000.

FROTA, Gustavo da. Perfil sociolaboral da imigração venezuelana no Brasil. Curitiba, CRV, 2017.

LIMA, José Carlos Franco.Acolhimento, proteção e inserção criativa: uma reflexão sobre a metodologia do Projeto de Apoio a Refugiados em Roraima.Boa Vista, I Seminário do Doutorado Insterinstitucional UFPE/UFRR, 2018.

OIT/Brasil. Inserção laboral de migrantes internacionais: transitando entre a economia formal e informal na cidade de São Paulo. Brasília, 2017.

VENTURA, Luís et alii. Relatório sobre a situação das populações imigrantes no Estado de Roraima. Comitê dos Migrantes em Roraima. Boa Vista, 26 jan. 2018.

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